sábado, 16 de outubro de 2010

Leitmotif.

Abotoou sua camisa branca, de mangas longas, até todos os botões menos o da gola, pôs seu paletó e sua calça, ambos castanho-claro, uma gravata castanho-escuro e um par de sapatos pretos, de cardaço de secção esférica fina. Pegou seu chapéu meio-panamá, preto, e abriu a porta. Pegou seu isqueiro, seu guarda-chuva comprido (daqueles de ponteira metálica), suas chaves e seu maço de cigarros e partiu. Entrou no carro, virou a chave meio-ciclo para verificar a quantidade de gasolina no tanque. Três quartos cheio. Hmm, bom, deve ser o suficiente para um propósito tão despropositado quanto o seu. Ligou efetivamente a ignição e saiu a rodar.

Saiu da cidade, pegou uma rodovia estadual qualquer e seguiu. Após cinco horas chegou a uma rodovia federal, e então entrou nela pela rótula e seguiu por ela no sentido noroeste. E seguiu por mais três horas. Parou em um posto de gasolina e encheu o tanque novamente. A crédito, no cartão - o único que mantinha, para emergências. Seguiu até se cansar das quatro faixas de asfalto em sua frente, então começou a procurar por cidades. Passou por quatro entradas de cidade, e então achou outra rodovia estadual - já em outro estado, nem sabia como havia chegado a tal. Dobrou em direção a estadual e a tomou. Entrou na terceira cidade que achou - uma cidade pequena mas completa, de estilo urbano/suburbano. Procurou um hotel que tivesse ao menos quatro estrelas, para não ter de procurar restaurante nem ter de se incomodar com infortúnios devido à falta de qualidade e aos amigos que a mediocridade hotelária traz. Achou um, de quinze andares, ocupando uma face de quadra. Tomou um quarto simples, de suíte mas com cama de solteiro. Modesto, mas pediu serviço de quarto a todas as refeições secundárias. Desceria para tomar o café da manhã e o da tarde, bem como para almoçar e jantar. E se fixou ali por um mês. Não era ano de eleição, então não se preocupou com títulos. Já havia cancelado as contas de água, luz, gás e telefone, e retirado seu endereço de diversas contas secundárias que não mais teria; as demais cartas ele encaminhara para a casa de um irmão seu que morava mais alguns pares de centenas de quilômetros ao norte. Com o tempo passou a ser reconhecido pelos membros do corpo de serviço do hotel. Pagava sua conta a cada semana que encerrava. Ia de vez em quando ao cinema local, distrair sua mente. Comprava alguns livros de bolso, os quais lia e jogava fora, pois não queria se apegar a um lugar de ar tão transitório. Um belo dia encerrou sua conta e pegou novamente o rumo da estrada, agora sabendo aonde queria ir.

Mais duas rodovias estaduais, uma rodovia federal, e então mais duas estaduais, e então na sexta cidade que encontrou ele entrou. Passou pela praça da parcela oeste do município, e então duas quadras acima ele dobrou à esquerda. Parou em frente à casa verde-abacate. Buzinou uma. Duas. Cinco vezes. Então um sujeito igual a si, porém com roupas bem mais soltas, informais, atendeu à porta. Chamou-lhe irmão. Recebeu sua correspondência desviada. Pediu ao irmão para começar a rejeitar as cartas, pedindo ao carteiro para encaminhá-las como extraviadas, ou como endereço errado, ou como destinatário não encontrado, ou qualquer desculpa dessas. Pegou suas correspondências e entrou, pois fora convidado. Eram quatro e meia da tarde, e era outono. Tomaram chávenas de café, acompanhado de pão com frios. Despediu-se e saiu. Entrou no carro, leu todas as cartas - as contas lera por cima, e as cartas redigidas de forma direta parou mais um tempo para ler. Jogou-as todas na lixeira da casa do irmão, na calçada. Entrou no carro, abasteceu mais uma vez, pediu para encher uma garrafa de dois litros e meio com gasolina reserva e entrou no carro. Rumou o mais diretamente ao leste que conseguiu. Chegou ao mar. Não era uma praia de areia, e sim de pedras. Acendeu o isqueiro. Abriu a garrafa de gasolina e despejou pelos estofados, pelas janelas, pelas entradas de ventilação do carro. Deixou o isqueiro cair. Estava em um declive. Soltou o freio de mão e saiu do carro. O pequeno sedan prateado entrou em chamas no mar. Em certo momento, já há uns dez metros dentro da água salgada, explodira. O homem observou o evento com um sorriso no rosto. Procurou o isqueiro para acender um cigarro e lembrou-se de que havia deixado-o no carro. Foi até um mercadinho e comprou um isqueiro descartável, barato. Acendeu um cigarro e se deitou na praia. Ficou até o final do dia deitado nas pedras, fumando e olhando para o céu. Quando o maço acabou, saíra pelas ruas e travessas. Roubou um carro de uma velha senhora que fazia compras num mercadinho de bairro. Acelerou o máximo que pode em uma contramão. Um caminhão. O impacto. A colisão não deixara muito o que identificar do velho carro a álcool preto da senhora. Por algum motivo, nos últimos segundos antes do choque, lembrara-se do poema O Corvo, de Edgar Allan Poe. Lembrou de forma fugaz do como gostava de salientar que toda poesia possuia o "poe-" de Edgar Allan Poe. Então o choque. E então, ninguém sabe dizer. Eu diria que fora a escuridão. Mas o que é a vida, senão uma escuridão com recortes coloridos cubrindo-a? Nem seus pedaços de carne e gordura espalhados pelo asfalto e pelo que fora uma vez o interior do carro saberiam responder. Muito menos seu velho chapéu meio-panamá.

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